Primeiro como tragédia, agora como farsa

luisLuís Carlos Valois*

Uma das frases mais citadas depois do golpe foi a célebre constatação de Marx, de que a história se repete, “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (1997, p. 21). A lembrança sobre a repetição da história é de Hegel, Marx apenas faz o complemento, de que se repete como farsa.

Sob farsa ou tragédia, resta o medo nessa repetição tupiniquim. A forma como se deu o golpe já é demonstração cabal do esfacelamento das instituições e de seus mecanismos, um impeachment sem crime, com juízes parciais, em um simulacro de julgamento e com uma pena inexistente: no caso, o afastamento da presidenta, mantidos os seus direitos políticos.

Fora do contexto jurídico, que sempre falseia a realidade, por mais violador de direitos que seja, a situação é pior porque o que aconteceu, na prática, foi o alçar de uma pessoa impopular, com um programa de governo sem legitimidade, à presidência.

Por óbvio, só uma pessoa que já se sabe impopular para propor a extinção de direitos trabalhistas, o aumento da jornada de trabalho, o sucateamento da saúde e da educação. Alguém sabidamente com votos nunca proporia nada parecido. Aliás, nem votado pode ser esse cidadão, já que, esse sim, teve seus direitos políticos cassados.

Esse estado de incompreensão, estapafúrdio, faz parte dos golpes, seja o trágico, seja o satírico, mas cabe a nós tentar sair dessa letargia cognitiva. Para esse objetivo, a obra do francês Paul-Laurent Assoun, “Marx e a repetição  histórica” (1979), pode ajudar a compreender melhor a afirmação de Marx. Assoun tenta construir uma teoria da repetição histórica, baseada na manutenção da exploração de classe.

Inalterada a base econômica, as peças tendem a voltar para o mesmo lugar no tabuleiro, em um jogo que não tem fim. Jurídico, administrativo, legislativo, não importa, todos dançam a mesma música, que tende a repetir melodias, acordes e refrãos.

Mas por que a repetição como farsa? Porque todo mimetismo é mesmo assim, sem consistência. Porque o golpe já não precisa mais de tanta justificativa para a ruptura. As circunstâncias são diferentes, mas são diferentes também por causa do golpe inicial. O golpe perde a cara-de-pau, se exerce sem escrúpulos e com maior adesão.

Diz o autor que “no cômico, a humanidade torna-se o sujeito da necessidade histórica da qual não era mais que o objetivo no trágico. Ela coloca-se na origem de sua determinação” (Idem, p. 90). Reconhecer isso faz parte de uma certa maturidade histórica, mas não reconhecer levará à repetição infinita.

Os estranhos seres que antes combatiam a corrupção batendo panelas, muitos agora defensores do governo, chegam a ameaçar o já combalido Estado de Direito de um outro golpe, desta feita, dizem, verdadeiramente militar.

Mas a farsa não consegue esconder a militarização do próprio golpe atual. Pessoas sendo presas, polícias militares (não só a militar estritamente falando, todas as policias brasileiras são militares, fardadas, armadas e estruturadas hierarquicamente) combatendo manifestações, direitos e garantias indo pelo ralo. A única diferença talvez seja a farda do presidente.

O novo golpe não precisa criar uma polícia militar e uma polícia federal, elas já estão criadas. Para Maurcie Merleau-Ponty, “se a sociedade humana não tomar consciência do sentido de sua história e de suas contradições, a única coisa que se pode dizer é que elas se reproduzirão de maneira cada vez mais violenta, por uma espécie de ‘mecânica dialética’” (2006, p. 37). E a violência maior da atualidade está em não se saber de onde vem o tiro, a facada nas costas.

As instituições, devido à descrença geral para com o sistema político, sobrevivem de uma crença cega, podendo carimbar, nomear o inimigo sem mais muita justificativa, e isso é violência da pior espécie, violência da qual não se consegue defender, violência abstrata e absoluta.

A alegada crise tem apenas, “por efeito, ao repor em jogo os interesses vitais da dominação da classe, fazê-la por assim dizer retornar a sua própria origem, no momento de sua fundação, para renascer como classe dominante” (ASSOUN,  Op. Cit., p. 126). Não à toa Assoun, reconstruindo o caminho de Marx, dando sentido à tese da repetição como farsa, recorre, logo após esta última citação, a outro texto do revolucionário alemão, com o qual termino este meu próprio:

“Agora, o reino dos banqueiros vai começar”.

Referências:

ASSOUN, Paul-Laurent. Marx e a repetição histórica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

Merleau-Ponty, Maurice. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

*Mestre e doutor de direito pela Universidade de São Paulo, juiz de direito, membro da Associação de Juízes para Democracia (AJD).